No geral, as cerimónias fúnebres de Estado do antigo presidente da república Mário Soares tiveram grande dignidade e está por isso de parabéns quem as desenhou e quem as executou.
Portugal assistiu pela televisão a dois dias de directos televisivos, com grande solenidade e dignidade mas também com alguns momentos comoventes e humanos, tendo sido possível conciliar as honras de Estado com os desejos da família.
Haverá sempre uma ou outra crítica, face a um pormenor menos feliz ou a um desacerto ocasional. Pode haver, por exemplo, quem se surpreenda por ter visto o general Ramalho Eanes, acompanhado de sua mulher, passar à frente dos presidentes dos tribunais superiores, que têm precedência sobre todos os antigos presidentes da República. Ou quem tenha estranhado ver o Presidente do Parlamento Europeu, aparentemente desacompanhado, na porta dos Jerónimos à espera de transporte.
Mas na organização das cerimónias e na execução do seu programa há sempre imprevistos, problemas que acontecem quando menos se espera. O caso da bandeira foi talvez o mais notório mesmo para quem não é especialista em protocolo porque ocorreu durante a trasladação da urna para os Jerónimos com as televisões a transmitir em directo. O que me dizem é que a bandeira que o Protocolo de Estado entregou à agência funerária se rasgou quando colocaram uma fita para evitar que voasse durante o trajecto. Alguém disponibilizou imediatamente outra bandeira, sem se aperceber de que os castelos tinham a porta aberta…
Quando se está a trabalhar num evento com esta magnitude os imprevistos acontecem e às vezes a atenção aos pormenores pode falhar. O mais importante neste momento é perceber como se organiza um evento com esta solenidade e sem data marcada nem um modelo definido e testado.
Quando o antigo presidente foi internado em Dezembro, começaram os preparativos. Houve reuniões entre representantes dos três órgãos de soberania, elementos do protocolo do MNE, da Câmara de Lisboa, das forças de segurança e os representantes da família que logo decidiram que Mário Soares teria um funeral de Estado. Mas ninguém sabia ao certo o que era um funeral de Estado. O último enterro de Estado fora o de Salazar em 1970 mas um enterro religioso estava fora de questão. Os organizadores só se podiam basear no exemplo do enterro laico do presidente Carmona em 1951. O local também gerou bastante discussão. A Assembleia da República a exemplo de Carmona ou os Jerónimos onde esteve em câmara ardente Salazar? Ou ainda o palácio da Ajuda, a Cordoaria ou o antigo Museu dos Coches? Num almoço em que estiveram presentes o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro ficou decidido que seria nos claustros do Jerónimos por ter sido aí que Soares assinara o tratado de adesão à CEE em 1985. Mas correndo o risco de a chuva invalidar essa solução (cobrir os claustros é um trabalho que leva vários dias para não danificar a estrutura de pedra seiscentista).
Escolhido o local, mas ainda sem saber em que data se realizaria, começou-se a elaborar o guião recorrendo a legislação específica sobre honras fúnebres no âmbito militar. Todos os antigos presidentes da República portugueses têm direito a honras militares, por serem agraciados no final do mandato com o Grande-Colar da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Aliás as respectivas insígnias tiveram sempre grande protagonismo durante as cerimónias fúnebres e no final foram entregues por um militar a um neto do antigo presidente no cemitério dos Prazeres.
A definição do percurso foi o passo seguinte com visitas preparatórias aos diversos locais. Quando Mário Soares morreu estavam já escolhidos os locais emblemáticos por onde deveria passar. Ninguém previu que um percurso de 7 quilómetros num dia frio de inverno não era a melhor solução, servindo apenas para evidenciar a falta de interesse da população em acompanhar este cortejo fúnebre. Um erro que pode ser evitado em futuras ocasiões.
Este foi o primeiro funeral com honras de Estado do período democrático e pode criar um “guião” para os próximos. Mas convém não esquecer que este foi um enterro laico, podendo haver, e certamente haverá, outros que serão religiosos obrigando a introduzir alterações significativas no programa. Falta por isso agora elaborar um decreto sobre as regras de funerais de Estado em Portugal para facilitar a tarefa de quem tiver de os organizar no futuro.
Isabel Amaral
Presidente da APorEP – Associação Portuguesa de Estudos de Protocolo
Lisboa, 16 de janeiro de 2017
Foto: Site da Presidência da República